Portal Brasileiro de Cinema  O assobiador e seu cão

O assobiador e seu cão

Geraldo Veloso

Perdidos e malditos é um filme que considero isolado dentro de um contexto de referências e, ao mesmo tempo, prenhe de influências as mais diversas. Minha trajetória no cinema começa desde quando não sei exatamente. Meu pai e minha mãe sempre me levaram ao cinema, meus irmãos sempre foram “fans” e leitores sistemáticos de críticas. Logo me misturei, no colégio, aos doze anos de idade, no segundo grau, aos “gambás” (não se diz por aí que “gambá cheira gambá”?) da cinefilia. Mas já tinha em minha memória as cinco ou seis vezes que tinha visto Depois do vendaval, de John Ford. E na revista caseira que meus irmãos publicavam, O Assobiador e seu Cão, li as primeiras críticas falando em Neo-Realismo, Rosselini e por aí afora. Minha irmã cortava e empilhava, metodologicamente, as críticas do nosso mestre Cyro Siqueira (um dos criadores do Centro de Estudos Cinematográficos de Minas Gerais, há mais de cinqüenta anos — e que hoje tenho a honra de dirigir —, e da Revista de Cinema — não essa de hoje, do Hermes, mas aquela que ouvi de Glauber Rocha, há muitos anos, que tinha aberto o seu interesse para a realização de cinema, chegando até a viajar a Belo Horizonte para conhecer os seus colaboradores e editores), escritas, pelo menos três vezes por semana, no jornal de maior circulação do estado, o Estado de Minas. E depois líamos religiosamente, no Suplemento Literário do Estado de São Paulo, todos os sábados, os textos do gênio Paulo Emilio Salles Gomes, de Rudá Andrade, de Gustavo Dahl, de Maurice Capovilla, de Jean-Claude Bernardet, que eram objeto de discussões intermináveis na porta da Livraria Itatiaia, na galeria do Edifício Dantés e depois na rua da Bahia, em Belo Horizonte. E, à noite, o papo continuava nas sessões do Centro de Estudos Cinematográficos (o velho e glorioso CEC), no topo do Cine Arte Palácio, onde semanalmente víamos e debatíamos os filmes soviéticos, poloneses, americanos, suecos, italianos, franceses, alemães, indianos, espanhóis, mexicanos, argentinos, japoneses, brasileiros e... Além das “amarelinhas” (Cahiers du Cinéma), do Positif, do Sight and Sound, do Cinema Nuovo, do Bianco e Nero, do Films and Filming etc. Daí para o cinema de realização (depois da reflexão — Michel Subor no Le Petit Soldat dizia: “Terminou o tempo da reflexão. Começou o tempo da ação”) foi um passo.

Nelson Pereira dos Santos (que nos ajudava num sonho de realização do primeiro projeto de longa-metragem, a ser realizado depois de muitos anos em BHZ, Namorados, de José Haroldo Pereira) vinha, a nosso convite a Belo Horizonte, e numa dessas chegadas anunciou que três filmes iriam ser realizados em Minas (um dele, Nelson, um do Roberto Santos e um do Joaquim Pedro de Andrade). Capitaneados pelo recém-revelado produtor Luiz Carlos Barreto, Joaquim e Roberto realizaram os seus: O padre e a moça e A hora e vez de Augusto Matraga. Nelson não rodou, naquele momento, o seu projeto. Daí surgiu a geração que veio a iniciar um novo processo no cinema realizado em Minas (Carlos Prates Correia, Flávio Werneck, Guaracy “Guará” Rodrigues, Harley Carneiro e eu).

Voltando do filme, fundamos o Centro Mineiro de Cinema Experimental (que, em seguida, vai produzir os filmes de Carlos, de Flávio, de Schubert Magalhães, de Neville d‘Almeida, de Alberto Graça e de outros).

Parto para o Rio a convite de Joaquim Pedro e começo a formar, com Maurício Gomes Leite (meu mestre e maior influência), a Tekla Filmes Ltda., para produzir O velho e o novo, Vida provisória, Tostão, a fera de ouro, vários curtas e parcerias com filmes de Paulo César Saraceni (Capitu), João Carlos Horta, Davi Neves, Antônio Calmon, Antônio Carlos da Fontoura e por aí afora.

Nesse meio tempo vai amadurecendo o projeto de Perdidos e malditos. Enquanto isso monto dezenas de filmes, documentários, institucionais, trailers, numa geração de montadores da qual muito me orgulho de fazer parte (Nelo Melli, João Ramiro Mello, Eduardo Escorel — meu mestre de montagem —, Mair Tavares, Gilberto Santeiro, Amauri Alves, Manoel de Oliveira e outros). E começa a surgir o núcleo do udigrúdi brasileiro em torno dos filmes do Festival JB de 1966. Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, Neville d’Almeida, Márcio Borges, Fausto Balloni, Sílvia Ferreira, os irmãos Sérgio e Gilberto Santeiro, Edson Santos, Ivan Ferreira, Joel Macedo, José Alberto Lopes, Wilson Cunha, Klaus Schell, José Carlos Avellar e outros começam a desenvolver uma irmandade “fatal”. E os filmes começam a surgir. O Bandido, Blá, blá, blá, Jardim de guerra vêm à luz e inicia-se a gênese de um movimento que hoje começa a ser visto como um capítulo fundamental da trajetória da cultura cinematográfica brasileira do século passado.

Depois de fazer Bang bang, com Tonacci (filme irmão de Sagrada família, de Sylvio Lanna), em Minas, volto para o Rio e filmo Perdidos e malditos, em agosto de 1970. Filmo em quatro dias e uma manhã vinte e poucos planos-seqüência, monto em duas rodadas de moviola (som direto, sem trilha sonora — só temos uma música no final do filme, “Miles runs to voodoo down”, de Miles Davis — ninguém falava em Dogma 95 naquela ocasião) e mixo em uma tarde, sob a magia do mestre Carlos de la Riva. Súmula de todas as referências cinéfilas, literárias, pictóricas e culturais (Jean-Marie Straub, Godard, John Ford, Joseph Losey, Joshua Logan/Pic Nic, Rosselini, Fellini, Hopper, Nelson Rodrigues, Maiakovski e por aí afora), o filme queria ser o resultado minimalista e confessional da observação de uma trajetória existencial que estava ocorrendo com toda uma geração. Moldado no modelo do film noir (via Monogram Pictures, lembrada por Acossado), o tema falava de conflitos conjugais deflagrados por diferenças sociais (The crowd, de King Vidor) e transformações determinadas por anjos exterminadores (The servant, Boom, de Losey e História do zoo, de Albee). A súmula de tudo o Carlão (Carlos Figueiredo da Silva, meu ator e amigo querido) trouxe: “O homem é o que ele come” (Buda). Orson Welles dá a chave da arrogância caricata: “Eu escrevi, produzi, montei e dirigi este filme. Meu nome é Geraldo Veloso”. E Alberto Cavalcanti, anos depois, quando vou trabalhar com ele na montagem de Um homem e o cinema, vê o filme e me recomenda para seu amigo e colaborador, Gilvan Pereira, para realizar o roteiro do seu filme, Os sensuais, crônica e uma família pequeno-burguesa. E depois conspira para me dar o prêmio pelo trabalho de roteirização, no Festival de Cabo Frio.

Hoje, depois de Toda a memória das Minas (curta realizado por mim para a Funarte), de Homo sapiens (ensaio provocativo realizado sob a inspiração do super-8 — que usei muito —, dos ensaios familiares de Stan Brakhage e das idéias de Carmelo Bene — Caprici e Nostra Signora dei Turchi) realizei, em parceria com os amigos e companheiros Paulo Augusto Gomes, Jorge Moreno, Milton Alencar Júnior, Cunha de Leiradella (roteirista), O circo das qualidades humanas.

Hoje sou um operário do cinema. Dirijo entidades de classe, um cineclube histórico (o CEC), ajudei a criar a TV Minas (a televisão pública do estado), onde coordeno a produção de um programa semanal sobre cinema há mais de seis anos. E o trajeto no cinema continua. Quero produzir mais (tenho pelo menos cinco projetos de filmagem de longas em desenvolvimento) e, eventualmente, voltar à direção (quero filmar Alguns vieram correndo e As caixas de Pandora, projetos pessoais autorais) logo que tiver tempo e fôlego para isso.

Vejam Perdidos e malditos com generosidade e com o devido distanciamento histórico. Tenham paciência com a arrogância juvenil de um menino que dizia para si mesmo que, “se Welles e Godard rodaram seus primeiros longas em torno dos vinte e seis anos de idade, eu também tenho que fazer o meu...”. E aí está Perdidos e malditos (numa sessão do filme em Nova York, um cinéfilo americano perdido — não sei se maldito —, completamente estranho a mim, acrescentou mais uma influência involuntária ao filme: os planos longos, frontais — a câmara não estava no nível do chão e sim na altura do olho, como em Hawks —, além do olhar minimalista sobre o cotidiano, lhe lembravam Yasujiro Ozu; bem, essa foi demais para mim!). Será que temos alguma lição a apreender desse período da produção brasileira da Belair (de Júlio, Rogério e Helena), de Elyseu Visconti, de Carlos Frederico, de André Luiz Oliveira, de Alvinho Guimarães, de Emílio Fontana, de Carlos Alberto Ebert, de José Sette de Barros Filho, de Paulo Bastos Martins, de Carlão Reichenbach, de Antônio Lima, de João Silvério Trevisan, de João Batista de Andrade, de Antunes Filho e de dezenas de outros? Vamos pensar sobre isso?